quarta-feira, 21 de março de 2007

Tal como um gato.



“Como hábito, estou sentada no parapeito da janela.

Escrevo.

Desenho, escrevo, sonho ou apanho sol... tanto me dá seja dia ou seja noite, mas sempre lá. Sempre no parapeito da janela. Sempre como um gato.

Agora o meu pai faz-me companhia. Ou eu faço companhia ao meu pai. Ele trabalha no seu arraiolos e eu alheio-me para o meu mundo. Como se estivesse num apartamento completamente vazio à parte do chão de madeira, das paredes pintadas de branco e do meu parapeito da janela com a janela (pois claro).

Um apartamento vazio, um parapeito da janela e eu. Eu e o meu bloco. Pois é nele ecrevo e desenho e sonho. Só não apanho sol.

Por isso, assim, vou apanhar sol e sonhar, desenhar e escrever no meu bloco.

Clock clock clock. A noite é escura. A lua é branca e brilhante. Quase invisível. Clock clock clock. O passo é apressado. Não que houvesse grande pressa. O motivo é o entusiasmo. Clock clock clock. Ruído. Há música forte a bater perto. O manto negro atrasa. Clock clock clock. O som do sapato preto na calçada portuguesa. Clock clock clock clock. É forte. As passadas são largas. O ritmo é aliciante e frustante.

Clock clock clock clock. Está frio e surgem brisas arrepiantes. Os tornozelos arrepiam-se ao entrar na ponte. A camada fina e preta não os protegem. Clock clock clock clock! O passo é mais rápido. O capuz cai e o cabelo é empurrado para trás violentamente, os olhos ficam semi-cerrados e os joelhos descobertos. O vento vem de frente, é obrigada a baixar a cabeça e a insistir na velocidade.

Clock clock clock clock clock. Quase que corre. Clock clock clock. O passo abranda. De novo na calçada portuguesa. Está perto.

Encontra-o no meio da multidão negra.

O raspa raspa das capas, o clock clock do salto do sapatinho no chão imundo, o fush fush do vento bruto, a música alta da festa longínqua, os cabelos na boca, a poeira no ar, o barulho dos cafés e da multidão. O peso, a rapidez, a emoção! Ninguém ousa abrir as capas.

Estava de costas. Clock clock clock clock clock. Aproxima-se e quando está prestes a tocar no ombro dele, ele vira-se para trás. Clock! Ele vê-a. Está em choque. A caminho do sorriso ele pára. Está comovido. Não pronuncia palavra. O sorriso ficou inacabado. Silêncio.

- Esqueceste-te de mim?

Ela. O cabelo outrora liso, cheio de caracóis. Ali, no meio da calçada portuguesa, no meio de Coimbra! Sorria em profundo êxtase contrastando a apatia dele. Estava estático. A noite agora estava quase limpa.

- Não.

Os sons voltaram. O barulho dos morcegos, da música longínqua, dos cafés...”

Agora já posso regressar à realidade. Saio da rua, do frio, das esquinas escuras, do chão imundo, da calçada portuguesa. Passo pelo meu apartamento vazio de paredes brancas e chão de madeira. Volto à minha casa cheia, à companhia do meu pai, ao tapete de arraiolos, à televisão desportiva, à luz alaranjada do passar do tempo e a mim, que escrevo no meu bloco a apanhar sol. Sempre no parapeito da janela. Sempre como um gato.”

1 comentário:

  1. Gosto muito do ronrom desse gato que passa tardes e tardes a apanhar sol.. :)

    J

    ResponderEliminar

passa a palavra