sexta-feira, 30 de março de 2007

Coração transparente.


Silêncio.
Apenas se ouve o marulhar da água.
O ar quente abafa. Quase que se ouve o vapor a embater contra as paredes.
O meu corpo é leve. Ondulo. Bóio. Este espaço está por minha conta.
Tranquilidade.
Os meus cabelos espalham-se num movimento semi-rotineiro à volta da minha cabeça como um sol.
Não me mexo. Estou quieta desde a ponta das mãos à ponta dos pés. A água que me leve aonde quiser.
Por vezes roço com os dedos, os limites da piscina. É áspera. Não muito, mas o suficiente para querer estar sempre a boiar.
Não fecho os olhos. Olho para o tecto branco, quente e aborrecido.
Está calor. É um facto.
O tecto está cheio de gotas de água fria pendentes. Prestes a cair em cima de mim e a gelar-me.
Ploc!
Caiu uma no canto esquerdo, ao fundo, junto às escadas.
A piscina tremeu de frio. (Mas nem senti)
Ploc, ploc!
Duas mais. É uma ameaça. São gotas gordas e pesadas.
Vou navegando. Não faço de propósito mas vou-me afastando cada vez mais da zona onde as gotículas caíram.
Páro.
Chego ao fim da linha. Não posso ir mais.
Aqui reparo e esqueço-me de tudo o resto.
Ao longo deste tempo não tenho fechado os olhos. Estive sempre a ver cada gotinha de água fria que pende ameaçadoramente do tecto. E ali estava.
Coincidência ou não, não sei. Não fiz de propósito.
8 gotas de água formavam um coração. Não era muito grande nem perfeito. Não era muito nítido mas notava-se. O meio era vazio. (à espera de se encher?) Sabia-se que as gotas que o preenchiam já há muito tinham caído.
ploc, ploc, ploc!
Três gotas quase ao mesmo tempo caíaram perto de mim. Era um aviso. Não me acertaram- Uma perto do pé esquerdo, outro perto da cabeça e outro perto do ombro direito.
Mas não me importei. Só queria saber do coração que ali estava. Formado por gotas pendentes e frias. Era irónico. Era único. E só eu estando ali, era meu.
E neste momento em que me fundia com o coração...
ploc!
Aconteceu.
Fui acordada dessa ligação mística por uma gota fria e ciumenta. Caiu-me um pouquinho abaixo do olho esquerdo e obrigou-me a fechar os olhos.
Fiquei gelada.
Sabia que o coração ainda estava lá. Mas não voltei a vê-lo. Era um momento. Verdadeiro e único. Não queria torná-lo artificial.
Pousei os pés no chão e virei-me para a porta. Subi os degraus da piscina, peguei na minha toalha, sequei-me e fui-me embora, deixando o meu coração vazio no tecto frio da piscina.

sexta-feira, 23 de março de 2007

Tu, Esperança!


Vivemos todos a custa uns dos outros.

Uma cadeia de infinitas sucessões,

Em que os esforços de alguém de baixo

Sustenta a vida de quem está em cima.

Neste mundo,

Onde reina a confusão, o ódio,

A efemeridade do brilho de cada um,

Existias tu

Pequenina

Inocente e inofensiva…

Floresceste sobre os meus olhos,

Saíste do ovo que te protegia

E irradiaste luz quando te vi pousar na minha mão…

Eras o contraste da humanidade,

O oposto do Presente.

Eras o desejo de cada um…

És aquela esperança que ninguém espera ver…



22-8-2005

quarta-feira, 21 de março de 2007

Tal como um gato.



“Como hábito, estou sentada no parapeito da janela.

Escrevo.

Desenho, escrevo, sonho ou apanho sol... tanto me dá seja dia ou seja noite, mas sempre lá. Sempre no parapeito da janela. Sempre como um gato.

Agora o meu pai faz-me companhia. Ou eu faço companhia ao meu pai. Ele trabalha no seu arraiolos e eu alheio-me para o meu mundo. Como se estivesse num apartamento completamente vazio à parte do chão de madeira, das paredes pintadas de branco e do meu parapeito da janela com a janela (pois claro).

Um apartamento vazio, um parapeito da janela e eu. Eu e o meu bloco. Pois é nele ecrevo e desenho e sonho. Só não apanho sol.

Por isso, assim, vou apanhar sol e sonhar, desenhar e escrever no meu bloco.

Clock clock clock. A noite é escura. A lua é branca e brilhante. Quase invisível. Clock clock clock. O passo é apressado. Não que houvesse grande pressa. O motivo é o entusiasmo. Clock clock clock. Ruído. Há música forte a bater perto. O manto negro atrasa. Clock clock clock. O som do sapato preto na calçada portuguesa. Clock clock clock clock. É forte. As passadas são largas. O ritmo é aliciante e frustante.

Clock clock clock clock. Está frio e surgem brisas arrepiantes. Os tornozelos arrepiam-se ao entrar na ponte. A camada fina e preta não os protegem. Clock clock clock clock! O passo é mais rápido. O capuz cai e o cabelo é empurrado para trás violentamente, os olhos ficam semi-cerrados e os joelhos descobertos. O vento vem de frente, é obrigada a baixar a cabeça e a insistir na velocidade.

Clock clock clock clock clock. Quase que corre. Clock clock clock. O passo abranda. De novo na calçada portuguesa. Está perto.

Encontra-o no meio da multidão negra.

O raspa raspa das capas, o clock clock do salto do sapatinho no chão imundo, o fush fush do vento bruto, a música alta da festa longínqua, os cabelos na boca, a poeira no ar, o barulho dos cafés e da multidão. O peso, a rapidez, a emoção! Ninguém ousa abrir as capas.

Estava de costas. Clock clock clock clock clock. Aproxima-se e quando está prestes a tocar no ombro dele, ele vira-se para trás. Clock! Ele vê-a. Está em choque. A caminho do sorriso ele pára. Está comovido. Não pronuncia palavra. O sorriso ficou inacabado. Silêncio.

- Esqueceste-te de mim?

Ela. O cabelo outrora liso, cheio de caracóis. Ali, no meio da calçada portuguesa, no meio de Coimbra! Sorria em profundo êxtase contrastando a apatia dele. Estava estático. A noite agora estava quase limpa.

- Não.

Os sons voltaram. O barulho dos morcegos, da música longínqua, dos cafés...”

Agora já posso regressar à realidade. Saio da rua, do frio, das esquinas escuras, do chão imundo, da calçada portuguesa. Passo pelo meu apartamento vazio de paredes brancas e chão de madeira. Volto à minha casa cheia, à companhia do meu pai, ao tapete de arraiolos, à televisão desportiva, à luz alaranjada do passar do tempo e a mim, que escrevo no meu bloco a apanhar sol. Sempre no parapeito da janela. Sempre como um gato.”

segunda-feira, 12 de março de 2007

Ambição

É tão fácil cairmos na tentação. Cairmos sempre no mesmo erro, a incapacidade de controlo em nós mesmos, a constante insuficiência de tudo, a necessidade de querermos sempre mais. A urgência de saciar a nossa gula.

Seja a insatisfação do homem... o professor: ora se queixa pelo burburinho ou pela apatia nas aulas, ou o aluno: ou se queixa que o professor falta de mais ou falta de menos.
Seja a insatisfação da mulher que nunca é magra demais, ou o homem que se não diz nada ofende a mulher, se diz qualquer coisa sai sempre errado.
Seja a insatisfação do amor: quando o temos e conseguimos, a tentação leva-nos outra vez.
Seja a insatisfação da amizade: quando não temos amigos lamentamos, quando os temos não lhes damos valor.


Somos constantemente perseguidos pelo nosso consciente e mesmo quando sabemos a teórica toda, a prática acaba quase sempre por nos surpreender.
A culpa de tudo isto? A sociedade, o pensar (como Fernando Pessoa já dizia...), os média... Somos sempre perseguidos por qualquer coisa e/ou por alguém. (Mesmo quando pensamos que já não existe. a verdade é que simplesmente o que nos persegue está sempre adormecido no fundo da nossa cabeça. E quando assim é, é porque a queremos assim. Ignoramo-la.)

Mas o facto é que resulta. Caímos sempre redondos no chão, enganados?, iludidos?, desiludidos? esperançados? Quão enganados é que realmente estaremos a ser? O que é que acontece à nossa auto-estima, à nossa força de vontade?

Estamos e somos assim tão perdidos?
Que confusão esta, de ser humano!