sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

Episódio I: 3 passos

Situar no tempo: Intemporal. Este episódio nunca saiu dos meus pensamentos.

Situar no espaço: sala de aula. É a minha vez de dizer algo sobre qualquer coisa. Amizades. Toda a gente olha para mim com ar sério e sinto a pressão e o silencio ensurdecedor da turma. Os olhos pesados da professora que me julga e avalia fazem-me arrepios. O dia é primaveril mas varia entre um sol pálido e bem vindo e nunvens de dégradés cinzentos.

Eu não sei o que fazer nem sei o que dizer. Não preparei o texto e como tal, fiquei especada a olhar para toda a gente tal como eles a mim. Aproximo-me do quadro e ponho-me perpendicular a ele, fitando o chão. Não sei de que nível, mas havia expectativa no que eu iria fazer. Dei 3 passos. Era suficiente. O ideal seria os três passos corresponderem ao comprimento do quadro. Como sou pequenina, paciência.
Quando finalizei os três passos, juntei os pés, virei-me para a turma, de frente para a professora sentada no fundo da sala e ergui a cabeça. O sol foi abrindo, iluminando-me de perfil. Olhei para o ambiente, quase sem me mexer e disse: "3passos. Eu dei três passos.". Esperava uma risota ou qualquer comentário despropositado de alguém, mas nada cortou o ar. Era tenso demais para alguém ousar falar.
"só precisamos disto para uma amizade seja diferente. Isto. 3 passos."
O meu cérebro estava paralizado e as palavras saíam da minha boca como bolinhas de sabão prestes a rebentar no ar. Não pensava em nada senão nos olhares que me lançavam. O suspense, a meu ver, tinha-se transformado em terror. Ninguém percebia nada. Mas se percebiam ou não também não disseram nada para contestar. E continuei.
"Isto é espaço. 3 passos é o espaço suficiente para tudo mudar."
Voltei ao meu ponto de partida, peguei no giz e desenhei uma linha vertical de 10 cm aproximadamente. Depois, mais ou menos a meio do traço uni o giz ao quadro e repeti os três passos que dei, paralelamente ao quadro, arrastando o giz comigo, resultando numa linha horizontal torta e desformada e conclui o desenho com outro traço vertical semelhante ao primeiro. Uma brisa passou, fazendo barulho de vento na janela. Foi breve.

Continuei. "Este é o espaço que é suficiente para uma amizade não ser mais que um olhar, ou um desvio de olhares, um aceno ou simplesmente ficarmos rígidos e com o constragimento entre nós. Neste espaço, não estamos suficientemente próximos para nos ouvirmos, para dizermos qualquer coisa um ao outro, para trocar confidências ou carinhos... não é suficiente nem para nos zangarmos nem para guardar o silêncio confortável que uma amizade sólida e única trás de vez em quando.
É o espaço que suga as palavras que queremos dizer, que repela o olá, o contacto e lentamente, o que queremos dizer é todo sugado e não restará mais nada do que isto. Os três passos. O espaço.
E depois, o tempo passará e ninguém sabe quanto espaço está entre nós e quantos passos temos de dar. Não sabemos sequer se o outro está lá para nos ver a caminhar.
Podemos querer andar mas a incerteza destrói o movimento."
Apeteceu-me continuar. Tinha muito para dizer mas acho que era mais para casos pessoais da minha vida e que não tinha a ver com a turma.
O sol mergulhou lentamente entre as nuvens cinzentas fazendo-se notar a diferença gradual da luz. Uma aragem abanou as flores brancas que embelezavam a janela da sala. Estava mais escuro.
Quando acabei de falar estava hirta, tal como quando comecei a falar. Estava exactamente no mesmo sítio quando tinha finalizado os 3 passos. Repentinamente, mudei de ambiente. Passei de extremamente tensa para natural, pousando o giz e sentando-me no meu lugar, na 1ª ou segunda fila, em frente à porta, apoiando a cabeça na mão esquerda e olhando para a professora que se tinha posto no meio da sala, junto ao quadro a falar para nós.
A partir daí, o tempo decorreu normalmente e sem demoras e o sol voltou a radiar a sala, fazendo sombra nas mesas de uns colegas das flores à janela...

1 comentário:

  1. "Este é o espaço que é suficiente para uma amizade não ser mais que um olhar, ou um desvio de olhares, um aceno ou simplesmente ficarmos rígidos e com o constragimento entre nós. Neste espaço, não estamos suficientemente próximos para nos ouvirmos, para dizermos qualquer coisa um ao outro, para trocar confidências ou carinhos... não é suficiente nem para nos zangarmos nem para guardar o silêncio confortável que uma amizade sólida e única trás de vez em quando.
    É o espaço que suga as palavras que queremos dizer, que repela o olá, o contacto e lentamente, o que queremos dizer é todo sugado e não restará mais nada do que isto. Os três passos. O espaço.
    E depois, o tempo passará e ninguém sabe quanto espaço está entre nós e quantos passos temos de dar. Não sabemos sequer se o outro está lá para nos ver a caminhar.
    Podemos querer andar mas a incerteza destrói o movimento."

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