quinta-feira, 6 de março de 2008

Episódio XII - cidade portuguesa



Um quarteto de prédios brancos e gastos. Paredes sujas e derramadas. Construções antigas e paradas no tempo. Um pátio interior já conhecido de cor e salteado. Muitos segredos e brincadeiras infantis passaram pelo cimento envelhecido. Ainda se ouvem ecos dos gritos das crianças. Gritos de êxtase inocente e puro. Canteiros pendentes e tristes dão à luz flores garridas e contrastantes. Um dia acinzentado acompanha a melodia melodramática de uma leitura de um bom escritor português. Um daqueles conceituados, de voz de bagaço e grave que palavreia asneiras formosas, floreados líricos e retratos espampanante ao mesmo tempo que se ouve uma Guitarra de Coimbra.
Num andar, uma televisão antiga de cores retrógradas com interferências no meio relata um jogo de futebol e publicidades ridículas e tradicionais. Acima, no prédio ao lado a mulher de cabelo preto e curto e avental branco lava com afinco a loiça e a cozinha de azulejos azuis banhados por raios ocasionais amarelados. à sua esquerda a vizinha gorda e sorridente tagarela incessantemente das coscuvelhices do bairro, num à-vontade desconcertante com farinha até ao cotovelo no seu braço direito. Na esquina, uma outra senhora jovem, esta de cabelos castanhos e ondulados punha a sua roupa branca com cheiro a neoblanc que perfumava as janelas próximas enquanto meditava na sua simplicidade de vida. Em cima uma avó sorria a pensar nos seus rebentos mais jovens. No lado oposto, na sombra, uma mulher berrava, de tempos a tempos, aos seus filhos, recados da mercearia do lado, para terem cuidado nos passeios, não correrem e transpirarem demasiado e para não se sujarem, ao mesmo tempo que se benzia sorridentemente de lhe ter calhado a sorte de ter uns filhos assim, que chegam a casa sempre rosados e mal vestidos, pois na verdade adorava os seus comportamentos aparente e socialmente rebeldes.
O vizinho de cima, o gordo frustrado é de quem os miúdos têm medo. Refila com tudo e com nada. A sua insatisfação é permanente mas no entanto é o adorado por todos e o coração mole, assim como os velhotes do quarteto. Em baixo, a empregada do avental de padrão de florzinhas pequeninas cor-de-rosa atira energicamente o balde grande da lixívia com água para o cimento do pátio tão sabedor paralelamente à passagem de uma mulher muito fina e com ar simpático que vai ao talho que conhece ao virar da esquina desde pequenina pedir meio quilo de lombo de porco para fazer carne assada com batatinhas assadas e um arrozinho branco para amanhã se deliciarem com um bacalhauzinho cozido e azeito quente por cima.
A loiça da senhora de cabelo preto e curto ainda se ouve, ao mesmo tempo que pedacinhos de espuma saltam da janela da cozinha para fora, juntando-se mais tarde à espuma asfixiante da lixívia, aniquilando, talvez, o cheiro da roupa mais branca do bairro.
Por vezes o queixume do senhor gordo, outras vezes cascas de tremoços e caroços de azeitonas se vêm das janelas abertas e maioritariamente solarengas.
Uma rápida vista de olhos a este pátio tão bem conhecido e caracterizador pela última vez, acabando de novo na voz embargadora e viciante do escritor e poeta e da guitarra que tão melancolicamente acompanha este sonho tipicamente português...

1 comentário:

passa a palavra